segunda-feira, 11 de outubro de 2010

RETRATO DA FAMILÍA GAÚCHA



Em 1835, na Província de Rio-Grande não havia escola publica, nem pontes. A população era de 1.500 habitantes entre brancos, índios e escravos. Havia quatorze municípios apenas, comarcas e vilas e poucos jornais. Os ricos mandavam os filhos estudarem na Europa. A grande maioria das mulheres não sabia ler. A capital gaúcha, com 15.000 habitantes, fervilhava. Nas ruas e nas praças aconteciam enfrentamentos entre os grupos, com ferimentos e até mortes. Esse era o clima político de todos os gaúchos do começo de 1835.

As relações intrafamiliares e entre famílias, predominantes na época da Revolução Farroupilha (inicio do séc. XIX) eram muito diferentes das que conhecemos hoje. Podemos classificar a família daquela época como “tradicional”.

A família tradicional era aquela geralmente numerosa, centrada na autoridade do patriarca, mais comum até a primeira metade do séc. XX. Eram considerados “familiares” não só os pais e filhos, mas todo o entorno familiar (avós, tios, primos, etc), e as relações eram baseadas nos conceitos morais e autoritários da época.

A família é um sistema no qual se conjugam valores, crenças, conhecimentos e práticas, formando um modelo explicativo de saúde e doença, através do qual a família desenvolve a sua dinâmica de funcionamento, promovendo a saúde, prevenindo e tratando a doença de seus membros.

Família também pode ser conceituada como uma unidade de pessoas em interação, um sistema semi-aberto, com uma história natural composta por vários estágios, sendo cada um deles correspondente a tarefas específicas.

A partir das diversas concepções de família e de nossa própria vivência familiar, entendemos família como um sistema inserido numa diversidade de contextos e constituído por pessoas que dela fazem parte.

Ao tratarmos da evolução familiar, podemos estabelecer uma diferença entre as famílias do norte e nordeste brasileiro em relação das famílias do sul. Mesmo que a figura paterna permaneça em todos os casos como figura central da família, no sul a figura da mulher (mãe) não é de mera submissão. As circunstâncias típicas da região determinaram que a mulher assumisse papel diferenciado na família, especialmente na questão trabalho.

A condição de fronteira e a maneira como se originou a sociedade sul-rio-grandense, foram determinantes para o surgimento de um tipo de família tradicional, mas com características próprias.

A tardia ocupação do território pelos portugueses e o desinteresse econômico pela região, entre o descobrimento do Brasil e o ano de 1737 (quando foi fundado o forte Jesus – Maria - José) permitiram que o espaço físico fosse ocupado de forma desordenada por todo o tipo de gente que se dedicava à caça de gado para a exportação e tráfico do couro. Eram indígenas, espanhóis, mamelucos, mestiços de toda ordem, ou seja, gente que não constituía laços familiares permanentes e nem se fixava na terra.

A partir da chegada dos açorianos (1752) inicia-se uma alteração social importante, com a fixação num espaço físico, seja com a finalidade de produção agrícola, seja para a exploração da pecuária.

Os açorianos introduzem novo conceito de família: o clã, ou seja, a família era maior do que simplesmente aquela formada por um pai, mãe e filhos. Surge a família que inclui, além de pai, mãe e filhos, os sobrinhos, avós e até alguns “agregados”.

Os colaboradores, chamados peões e serviçais da casa, em muitas situações se integravam à família, não de maneira formal, mas colaborando tanto na educação, quanto nos cuidados das crianças e servindo de espécie de “damas de companhia” ou de “guarda-costas” dos chefes das famílias.

Em razão do tipo de atividade, especialmente no campo, em que lida como boi e com o uso do cavalo, até os escravos eram tratados como “de casa”. O patrão era mais um trabalhador diferente do que ocorria nos engenhos do Nordeste e também nas charqueadas do sul.

As famílias abastadas exerciam grande influencia na igreja e no estado. O setor primeiro do Brasil foi montado por meio de privilégios. Daí o modelo de sesmarias. O Estado se beneficiava com o modelo e um grupo de privilegiados tornava-se senhores da terra, concentrando poder. A figura do coronel, também aqui no estado se estabeleceu, talvez em menor escala se comparando com o Centro e Nordeste Brasileiros, porém, de uma forma geral vamos encontrar os proprietários sendo brancos de origem européia. Aos mestiços, pardos e negros restava a tarefa de peão, de soldado ou escravo.

Na composição do poder, vamos encontrar o poder econômico, o poder militar e o poder político enfeixados na figura do “fazendeiro”, ou estancieiro, no mais das vezes com títulos militares distribuídos de acordo com a quantidade de homens que podia dispor para constituir a força militar que defendia a fronteira.

As famílias ricas diferiam das pobres. As primeiras eram concebidas em torno do economicismo, com o objetivo de manter o poder, especialmente econômico. Eram comuns os casamentos encomendados ou arranjados entre os chefes de famílias poderosas. Nas classes pobres não havia essa preocupação e as uniões se davam de forma menos estável e sem interesse econômico.

No tocante ao casamento, verifica-se que se restringia praticamente às famílias mais abastadas. Os pobres (peões e trabalhadores urbanos) constituíam a família sem que o casamento fosse formalizado. Casar-se era caro e grande parte da população não tinha esse recurso. O controle e o registro dos casamentos eram feitos pela igreja católica.

A exemplo do que ocorria no centro do país, especialmente em são Paulo, aqui também havia muitos filhos não legítimos. O concubinatos era uma prática tolerada e os filhos bastardos eram muitas vezes acolhidos em casa, postura que algumas mulheres adotavam para se fazerem de santas e mostrarem que haviam perdoado os desvios e pecados de seus maridos.

Os casamentos não eram tão precoces, pois praticamente não haviam casamentos de menores de 14 anos, talvez devido até à condição econômica que acabava retardando, seja por não terem condições de sustentar a família por si sós, seja para não dividir demasiadamente as terras entre os herdeiros o que, provocava uma diluição do poder.

Quanto aos escravos as famílias gaúcha não possuíam grande número destes, a maior concentração de escravos se dava nas charqueadas.

As moças ficavam, na nossa estrutura, presas a autoridade paterna. Se pegarmos o direito brasileiro à época das ordenações Filipinas, veremos que era justa causa para deserdação das filhas que elas deitassem com homem fora do lar paterno, porque isso era uma ofensa ao pater. Porém para os rapazes, havia uma maior tolerância. A lei tratava discriminadamente, pois por exemplo, o Código Criminal do Império, punia o adultério não com aquela voracidade das ordenações que mandavam apredejar as mulheres e outras penas originárias dos tempos bíblicos, mas punia o adultério serenamente. Já para o homem ser punido, precisava-se da prova material de que ele tivesse em concubinagem franca com a mulher, pois relações passageiras, pequenos desvios e alguns pecadilhos eram tolerados.

A mulher, que de uma forma geral tinha papel coadjuvante na família. No interior da Província, no entanto, ela se transformou em chefe do lar. A condição de sociedade militarizada, pela necessidade permanente de defesa das fronteiras e das permanentes disputas com os castelhanos, exigia que os homens permanecessem muito tempo envolvidos em campanhas militares, longe das casas. Nesse cenário é que as mulheres assumiam o papel de mandatárias, dirigentes e responsáveis pela faina nas fazendas.

No inicio do século XIX, não havia homens com mais de 14 anos que estivessem alistados em algum exercito regular ou irregular. Cada estância constituía, também, um corpo de combatentes que deixavam as lides campeiras para se incorporar em alguma refrega militar ou em alguma escaramuça com um caudilho uruguaio.

Frutos das “peleias” entre portugueses (gaúchos) e espanhóis (uruguaios e argentinos), era comum existirem prisioneiros nas localidades em que havia fortificações militares.

Na distribuição de tarefas familiares do século XIX, de uma forma geral, vamos encontrar o seguinte:

_ Os homens mais velhos, aqueles a quem não mais era atribuída a tarefa do sustento, ficava reservado o papel de conselheiro, contador de histórias, especialmente para as crianças e supervisor, sem poder de decisão, das lidas do campo. Era ele que ensinava como castrar os animais, tosquiar as ovelhas, curar bicheira, escolher a erva certa para determinado tratamento, aconselhar sobre ações políticas. A opinião do “avô” era sempre respeitada.

_ às mulheres mais velhas ficava reservada a tarefa de supervisão das tarefas da casa. Elas cuidavam da saúde da família ( não havia sistema de saúde naquela época, somente depois do movimento higienista é que surgem os profissionais de saúde). As “velhas” conheciam as propriedades dos chás, dos emplastros e encarregavam-se dos partos, seja na condição de parteira, seja ajudantes para o preparo do ambiente das águas e dos panos necessários. Muitas mulheres mais velhas dominavam os segredos das benzeduras. Elas também exerciam o papel de conselheiras para as moças, especialmente nas questões amorosas. O trabalho de fiar e tecer, para a produção de vestimentas cabia às mulheres.

_ aos homens maduros (pais de família) cabia a tarefa de prover o sustento e fazer crescer o patrimônio. Eles agiam como sensores e controladores da moral. A eles cabia autorizar ou não um namoro ou um casamento que, muitas vezes, eles mesmos se encarregavam de arranjar, sempre com o fim patrimonialista. Exerciam, na família, o papel central que era dividido com a esposa ou irmã quando se ausentava para cumprir a função de militar nas revoluções, ou outras refregas. Não tinham ingerência nas questões “da casa”, isto é, na escolha das roupas, na feitura da comida ou nos enfeites utilizados para a decoração. Sua influencia era muito maior no “galpão da peonada”.

_às mulheres maduras (mães de família) ficava reservado o papel de coordenação da casa, comandando as serviçais, inclusive os escravos que exerciam tarefas domésticas. Eram responsáveis pela educação dos filhos, seja religiosa, seja “escolar” – não havia escolas formais – a aprendizagem das letras (ler e escrever) se dava dentro da casa. Eram elas que cuidavam das roupas _ confecção e remendos _ assim como bordados, tricôs, macramé, etc. As técnicas de manejo dos fios era passada de mãe à filha. As mães orientavam a formação do enxoval das filhas e as orientava para a aprendizagem que as tornassem “virtuosas”. Muito comum era o aprendizado de algum instrumento musical. No Rio Grande do Sul, a mulher era compelida a assumir funções que tradicionalmente cabia aos homens, especialmente nos períodos bélicos. Quando os homens iam à guerra, ficavam as mulheres, as crianças e os velhos a cuidar das estâncias. Se seus homens voltassem faziam festa, se não voltavam a rezar e choravam resignadas e faziam promessas para que os filhos não precisassem seguir algum clarim.

_ os jovens, a partir de 12, 13 anos, começavam a ser preparados para o desempenho de tarefas campesinas e de soldados. Quando o pai era artífice (alfaiate, marceneiro, etc). Os meninos eram estimulados a aprender a mesma profissão. A pratica de pai para filho, era quase que uma regra válida para todas as situações. Na lida campesina cabia aos jovens aquelas atividades que exigissem destreza e demonstração de coragem como a doma de cavalos. Os meninos também eram utilizados como portadores de recados, espécie de estafeta, dentro da estância. Aos meninos bastava que fossem valentes, corajosos e dispostos a enfrentar os perigos. Saber ler escrever não era mais importante, porém quando o pai decidia que um filho deveria estudar na Europa ou na Corte, a escolha nunca caía sobre as meninas.

_ as meninas e moças eram preparadas, pela mãe, pelas tias e pelas avós, para serem esposas e mães. Toda a educação era voltada para que a moça fosse virtuosa e que tivesse condições de honrar a família. Nunca tinham autorização para se afastar da casa, a não ser que fossem acompanhadas de um homem de confiança, às vezes um escravo.

A educação formal era muito descurada em toda a Província do Rio Grande do Sul. Os jovens homens destinados à advocacia, à medicina e ao sacerdócio, eram mandados para as universidades em São Paulo. Em Porto Alegre existiam apenas escolas primárias (1830).

As mulheres, as crianças e os jovens não participavam das discussões políticas ou ideológicas. As reuniões, muito comuns seja nas salas das casas, seja nas lojas maçônicas, eram freqüentadas exclusivamente pelos homens.

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